Manifesto ao Estado Democrático de Direito
- Misael Alexis de Moraes
- 4 de ago.
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Atualizado: 5 de ago.

Diante das manifestações populares massivas ocorridas em 03 de agosto de 2025, ainda que não se possa concordar integralmente com todos os discursos proferidos por líderes da sociedade civil ou por representantes políticos legitimamente constituídos — tampouco com eventuais objetivos político-eleitorais expressamente declarados — é forçoso reconhecer que a Nação demonstra crescente consciência jurídica e maturidade política.
É difícil conceber que o pai de família, em seu provável único dia de descanso, se disponha a sair de casa para exercer sua cidadania em manifestações públicas se não percebesse relevância ou indícios concretos de preocupação legítima. O povo brasileiro é parte de uma sociedade politizada e intelectualmente atenta, que conhece e reivindica os direitos assegurados pela Constituição, como o sufrágio e a liberdade de reunião pacífica, independentemente de autorização estatal.
Particularmente, como advogado e cidadão, manifesto sérias dúvidas quanto à real necessidade do atual grau de protagonismo assumido pelo Supremo Tribunal Federal, tanto no cenário político interno quanto nas projeções externas. Historicamente, o valor institucional do STF residiu na excelência de seus juristas, na prudência de sua atuação, e na imparcialidade de suas decisões, fundamentadas na ciência jurídica em seu mais alto nível.
O foco da Suprema Corte deve ser a qualidade técnica de suas deliberações — um critério objetivo — que é, sobretudo, garantido por sua composição colegiada e pela observância dos princípios republicanos que regem a magistratura constitucional.
Manifestar-se é um direito de gênese recente na história dos povos livres — um fruto amadurecido apenas nas últimas estações do constitucionalismo moderno. Seu cultivo exigiu o adubo do sangue derramado por gerações que clamaram por voz, espaço e dignidade. Hoje, a liberdade de reunião pacífica e a expressão pública do pensamento figuram entre os mais nobres instrumentos da cidadania ativa, sendo pilares que sustentam não apenas o edifício democrático, mas também o ideal de uma Nação em constante aperfeiçoamento.
Entretanto, esse direito poderia, e talvez devesse, ser aperfeiçoado pela instituição de um mecanismo de recall — a possibilidade, já consagrada em ordenamentos jurídicos estrangeiros, de revogação do mandato de qualquer autoridade, seja ela do Executivo, do Legislativo ou, por que não, do próprio Judiciário, quando este ultrapassa os limites do que é razoável e constitucional. Não se trata de ruptura, mas de aperfeiçoamento institucional à luz da soberania popular, cuja fonte primeira emana do povo e para o povo deve sempre retornar.
Logo, a mera inexistência formal desse instituto no Brasil não inviabiliza — tampouco deslegitima — a crítica dirigida a agentes públicos e a integrantes de instituições, desde que ela se manifeste dentro dos limites da legalidade, da urbanidade e, sobretudo, por meio dos canais legítimos da República. A crítica é expressão do amor à pátria e da responsabilidade cívica, e ganha ainda mais dignidade quando conduzida pela via parlamentar, e de projetos populares (quando cabíveis), com projetos de lei, emendas constitucionais ou proposituras republicanas que visem fortalecer a harmonia entre os Poderes e restaurar o equilíbrio institucional.
Manifestar-se, neste contexto, é um gesto de esperança, não de subversão. É a declaração de que a sociedade deseja permanecer desperta, vigilante e coautora do destino que se escreve nas páginas da Constituição e da História.
Nos marcos de uma República constitucional, cada Poder da União exerce sua função com limites definidos pela Carta Magna. Quando esses limites são ignorados, abre-se caminho para a corrosão silenciosa — e por vezes consentida — do Estado Democrático de Direito. O momento institucional que o Brasil atravessa exige uma reflexão serena, mas firme, sobre os riscos da hipertrofia de um Poder em detrimento da harmonia entre os demais.
Recentemente, assistimos ao início de inclusão de autoridades brasileiras em investigações e iniciativas internacionais, como a aplicação da Lei Magnitsky Global por agentes políticos dos Estados Unidos, com potencial de sancionar indivíduos por violações de direitos humanos e corrupção. Tais medidas, embora unilaterais, têm consequências que extrapolam o plano simbólico. Elas afetam relações comerciais, fragilizam a credibilidade de instituições brasileiras e ameaçam setores estratégicos da economia nacional — inclusive exportações sensíveis ao mercado norte-americano, podendo causar efeito cascata para outros mercados.
Independentemente da legitimidade ou não dessas sanções externas, o que se impõe ao debate nacional é o motivo pelo qual o Brasil tem sido conduzido a esse tipo de exposição internacional. O protagonismo de agentes judiciais em matérias que não lhes cabem constitucionalmente tem gerado fricções com o Legislativo e agora, preocupantemente, com atores internacionais.
Não é atribuição do Poder Judiciário — órgão de natureza técnica, vinculado à interpretação e aplicação da lei — o papel de se arvorar em representante da soberania nacional em política externa, tampouco o de legislar ou governar. Quando ministros assumem protagonismo político, confrontam declarações de chefes de Estado estrangeiros ou orientam políticas de comunicação reduzida, há evidente inversão do princípio da separação de poderes, cláusula pétrea de nossa Constituição.
O Estado Democrático de Direito repousa sobre o pilar da legalidade, que vale não apenas para o cidadão, mas para o próprio Estado e seus agentes. Juízes não são soberanos, são servidores públicos limitados pela Constituição. Quando ignoram os contornos de sua função, deixam de ser garantidores de direitos para se tornarem agentes de instabilidade institucional.
Ser Ministro do Supremo Tribunal Federal sempre foi, e ainda deve ser, o ápice almejado pelos jovens ao sonharem com a carreira jurídica — um ideal de cume elevado, onde a técnica se encontra com a responsabilidade histórica. Para que esse sonho permaneça digno de inspiração, é essencial que a Corte seja reconhecida, não pelo protagonismo político, mas pela excelência de suas decisões e pelo carisma técnico-intelectual de seus integrantes, cuja autoridade se fundamente na erudição, na imparcialidade e na fidelidade à Constituição.
Ademais, a liberdade de expressão, a iniciativa privada e a segurança jurídica — fundamentos essenciais da democracia liberal — vêm sendo relativizados sob o manto de um “combate ao extremismo” que, na prática, criminaliza divergências, reprime vozes dissonantes e silencia o debate democrático.
É tempo de reafirmar os limites republicanos. Não se trata de hostilizar o Poder Judiciário, mas de reafirmar seu devido lugar constitucional, como árbitro imparcial e não como parte interessada nos embates políticos ou ideológicos da nação.
Este é um manifesto em defesa do verdadeiro Estado Democrático de Direito — um Estado que respeita o voto popular, a pluralidade de ideias, a livre concorrência e o devido processo legal. Um Estado que não permite a centralização de poder em nenhuma de suas instituições, por mais bem-intencionadas que possam parecer suas ações.
Por outro lado, e em nome da imparcialidade que este manifesto se propõe a preservar, cumpre também dirigir um apelo respeitoso aos atores políticos brasileiros instalados em Washington, nos Estados Unidos, para que respeitem a soberania da democracia brasileira, abstendo-se de medidas que possam escalonar desnecessariamente a crise institucional em curso. Ainda que compreensíveis as preocupações com princípios democráticos universais, não se edifica a autonomia de uma nação pela imposição externa de sanções ou soluções alheias ao seu próprio processo político.
Quando se clama por sanções a agentes públicos de outro país, a resposta pode vir desproporcional, além do pedido. No entanto, o poder e a influência geopolítica dos Estados Unidos exigem proporcional responsabilidade, prudência e respeito à autodeterminação dos povos. A história recente já demonstrou que intervenções externas mal calibradas tendem mais a agravar feridas institucionais do que a curá-las.
Qualquer sanção externa, só pode advir de uma decorrência geopolítica natural, do próprio direito estrangeiro ou internacional. Atores políticos brasileiros devem se abster de incentivar qualquer hostilidade contra a pátria, pois o remédio pode ser severo demais contra a enfermidade jurídica que se quer combater.
Não acredito, em absoluto, que o Brasil tenha esgotado suas capacidades institucionais para se autorreformar. Pelo contrário, ainda há amplo espaço para o exercício legítimo da soberania popular por meio do Parlamento, visando o aperfeiçoamento do equilíbrio entre os Poderes. É plenamente possível, dentro das vias constitucionais, aprovar limites objetivos à atuação monocrática no Supremo Tribunal Federal, restringir o uso indiscriminado do sigilo processual, regulamentar de forma mais clara o foro por prerrogativa de função, e até mesmo implementar o instituto do juiz de garantias no âmbito da própria Suprema Corte, como medida de reforço às garantias fundamentais.
Além disso, podem-se discutir propostas sérias como a transformação dos cargos vitalícios em mandatos temporários de até 12 anos, assegurando renovação e oxigenação institucional; o aprimoramento dos critérios de sabatina no Senado, exigindo-se efetivamente notável saber jurídico e reputação ilibada — e não apenas a chancela formal de um protocolo esvaziado de rigor.
Há, ainda, espaço para a efetiva função pública imparcial e democratização do papel do Presidente da Câmara dos Deputados e do Senado Federal, com regras que assegurem maior transparência e colegialidade na definição das pautas, sobretudo em matérias de alta relevância para a República, como impeachment e CPIs. Não se pode blindar instituições por via da existência de dois cargos que têm o poder de barrar o início de qualquer investigação.
Em suma, o Brasil não carece de intervenção externa: carece de coragem interna, de vigilância da sociedade e de vontade política reformadora, fiéis aos princípios constitucionais que consagram a democracia como um projeto contínuo e intergeracional.
As eventuais distorções internas da República brasileira devem ser enfrentadas, debatidas e corrigidas dentro das instâncias legítimas de deliberação nacional, especialmente na Câmara dos Deputados e no Senado Federal, onde reside a representação democrática do povo. É ali que deve florescer toda a sagacidade intelectual, jurídica e estratégica de nossos representantes, e não sob a sombra de pressões internacionais.
Por isso, conclamamos a sociedade civil, os juristas conscientes, os parlamentares e todos os defensores da democracia liberal a atuarem com firmeza. É preciso restaurar o equilíbrio entre os Poderes, conter os excessos e reafirmar que, em uma democracia madura, nenhum poder é absoluto — nem mesmo o Judiciário.
A Justiça, mais do que uma instituição, é uma expressão elevada do amor ao próximo e da empatia social. E a nós, advogados — indispensáveis à sua realização — cabe não apenas o ofício técnico, mas também o nobre dever de cultivar o pensamento jurídico crítico, lúcido e comprometido com a dignidade humana e o Estado de Direito.

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